quarta-feira, 27 de junho de 2012

O próximo inquisidor?



Gerhard Ludwig Müller

“Rumores muito confiáveis”, diz Marco Tosatti, no “Vatican Insider”, o sítio vaticanista do “La Stampa”, dizem que o cardeal William Levada vai deixar a Congregação para a Doutrina da Fé, talvez na próxima sexta-feira (dia de São Pedro e São Paulo, um dia ótimo para nomear que vigia pela ortodoxia da fé, já que Pedro e Paulo motivaram a primeira monumental discussão teológico-gastronómica do cristianismo – isto acrescento eu).

O lugar que já foi de Joseph Ratzinger, diz o mesmo Tosatti, deverá ser ocupado por um ratzingeriano. Quer dizer, talvez não seja bem um ratzingeriano, pelos motivos à frente apontados, mas alguém ligado a um sítio onde Ratzinger foi muito feliz, durante anos, e, na minha opinião, inconsciente, durante momentos.

Gerhard Ludwig Müller, bispo de Regensburg (ou Ratisbona) é o provável sucessor de Levada (norte-americano de ascendência açoriana). Ratzinger foi professor em Regensburg, durante anos, e, é impossível esquecer, foi na universidade desta terra que proferiu, já como Papa, o discurso que inflamou a rua muçulmana. Digo que foi um momento inconsciente porque no meio daquele discurso belíssimo e com teses muito fortes sobre as liberdades de investigação e religiosa (“não agir segundo a razão é contrário à natureza de Deus”) e a marca helénica da teologia cristã (“a recíproca aproximação interior… entre a fé bíblica e a indagação a nível filosófico do pensamento grego é um elemento de importância decisiva sob o ponto de vista não só da história das religiões, mas também da história universal – um dado a que estamos obrigados ainda hoje”), as referências ao Islão, além de me parecerem forçadas, eram suscetíveis de provocar a fúria muçulmana. Não sei se alguém terá lido previamente o discurso papal, mas se o leram, esqueceram-se da palavra mais ouvida nos corredores eclesiásticos: “Prudência”. Este era um caso em que devia ter sido usada. (Eu penso que o Islão é geneticamente violento. Mas não tenho de ser diplomata, nem tenho câmaras apontadas a mim, e, claro, pouca gente liga ao que eu digo.)

Quem é Gerhard Müller?

Tosatti explica com mais um aspeto ratzingeriano:
É um homem de uma personalidade notável, que exerce uma certa influência sobre Bento XVI. Sem ser contado entre o círculo dos amigos próximos do papa, ele certamente tem uma figura significativa, do ponto de vista acadêmico, o que estabelece um vínculo. Ele também desempenhou, e desempenha, um papel de qualidade na criação e no trabalho da fundação nascida na Alemanha para cuidar e acompanhar a publicação das obras literárias de Joseph Ratzinger/Bento XVI.
E com outro aspeto pouco ratzingeriano:
Müller é um grande admirador e amigo de um dos personagens mais debatidos da Teologia da Libertação, Gustavo Gutiérrez. Sobre este e sobre a Teologia da Libertação, ele proferiu palavras muito calorosas de elogio em 2008, durante um evento público na América do Sul, em Lima, para celebrar o título de doutor honoris causa conferido a Gutiérrez pela Pontifícia Universidade do Peru, na mira da Santa Sé justamente nestas semanas. O prelado de Regensburg nunca escondeu a sua admiração pelo amigo e mestre peruano, hoje com 83 anos (li aqui, tal como a citação anterior). 
Vamos lá ver se isto se confirma. Algumas pessoas, só por causa da amizade com um teólogo da libertação, já devem estar a dar voltas na cadeira (sou eu a imaginar; não sei de nada em concreto). Lanço, então, mais um motivo para aguardar com expetativas positivas esta nomeação: a capacidade de pensar diferente deste teólogo, que tem mais de 400 publicações académicas. Diz Tosatti, mas num texto de março deste ano: 
Em seu livro Dogmatica Cattolica [Müller ] oferece uma imagem da virgindade de Maria que não se relaciona com “as características fisiológicas do processo natural do nascimento de Jesus, mas com o influxo de salvação e de redenção da graça de Cristo para a natureza humana”. 
 Em outro livro, ao tratar do tema da transubstanciação, desaconselha o uso do termo “corpo e sangue”, porque poderiam induzir a confusão. “Corpo e sangue de Cristo não significam as partes físicas do homem Jesus durante a sua vida ou em seu corpo glorificado. Corpo e sangue significam aqui antes uma presença de Cristo sob o signo do pão e do vinho”. E, ao falar da Dominus Jesus, o documento de Ratzinger no qual se sustenta que as comunidades eclesiais que não preservaram um episcopado válido (muitas confissões reformadas) não são igrejas, sustenta que defender esta opinião é um “mal-entendido” (aqui, num texto de março de 2012).

A confirmar-se a nomeação deste teólogo de 64 anos (nasceu no último dia de 1947), penso que podemos esperar um modo novo de entender ou pelo menos de executar o papel da Congregação para a Doutrina da Fé.

7 comentários:

Unknown disse...

Aprecio bastante este Müller. Quanto mais não seja devido ao que aqui se diz que ele disse sobre Maria. Não é óbvio? Mas chamá-lo de "inquisidor" é perpetuar uma designação que já há muito foi varrida. Esperemos.

Unknown disse...

Esqueci-me de assinar o comentário anterior.

Fernando d'Costa

Jorge Pires Ferreira disse...

Fernando, eu não conhecia este Müller, pelo que admito que que representou novidade.

Quanto ao título, é, digamos, obviamente abusador. Mas é contrariado pelo texto. Era para chamar a atenção. De qualquer forma, a Doutrina da Fé é sucessora do Santo Ofício e terá sempre um papel de vigilância pela ortodoxia da fé. A grande questão prende-se com o que o que se entende por ortodoxia da fé. O entendimento de Müller, com os poucos dados de que disponho, parece ser mais liberal.

Simão Abreu disse...

Esperemos que a Congregação para a Doutrina da Fé deixe de ser um Dicastério apenas para condenar ou julgar, mas que seja ele mesmo a propor e a apontar algumas linhas mestras que orientem o estudo e a busca da Verdade e do Mistério de Deus.

Unknown disse...

O amigo Simão (posso chamá-lo de "amigo"?): basta ler os documentos doutrinais emitidos pela CDF ao longo dos anos (e já agora: os da Comissão Teológica Internacional que àquela esta ligada) para vermos que isso já é feito. Têm é pouca visibilidade fora dos meios académicos. Sabe? Investe-se (e, na minha opinião, mal) demasiados recursos em catequeses para crianças e depois nada mais passa para quem não o é.

Fernando d'Costa

Anónimo disse...

"Era para chamar a atenção". Onde é que é já vi isto???

BLUESMILE disse...

Excelente notícia.
E totalmente de acordo quanto á catequese ( oufalta dela) para os cristãos adultos...

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